História
27/07/2011
Memória tropeira
Luiz Cruz - Revista de História da Biblioteca NacionalEm 1671, Fernão Dias revelou a intenção de estruturar uma bandeira paulista objetivando encontrar as sonhadas serras de prata e de ouro. Passou três anos preparando os roteiros, levantando recursos, víveres, pessoal e tropa. Sua bandeira adentrou o sertão em 21 de julho 1674. No final do século XVII o ouro foi encontrado e atraiu muita gente: fluminenses, paulistas, baianos, pernambucanos e até mesmo portugueses, que para as Minas vieram à procura da riqueza fácil no ouro encontrado nas margens dos ribeiros. O metal precioso movia tudo, mas era uma vida difícil. Tudo vinha de longes paragens para abastecer as áreas minerarias. Logo surgem as primeiras plantações de subsistência. Ao longo dos caminhos vão criando os pontos de descanso, abrigo e abastecimento. No final dos setecentos mais de meio milhão de pessoas vivia nas Minas Gerais e para garantir a sobrevivência e diversificar a circulação de bens, outras atividades foram desenvolvidas: agricultura e agropecuária.
São João del Rei tornou-se um expoente entreposto e passou a circular com a produção, recebendo e enviando produtos para outras localidades e especialmente o Rio de Janeiro. O que era encaminhado: carne, toucinho, café, arroz, feijão, farinha, milho, rapadura, aguardente, algodão, trigo, queijo e doce. Diversos animais: galinhas, carneiros, patos, perdizes. Transportavam também utensílios como: selas, estribos, chicotes, chapéus etc. Tudo isso era transportado por tropas, que tocavam, ainda, boiadas que eram comercializadas por todos os cantos. Muitas tropas circulavam com oratórios de santos de suas devoções, mas tinham como padroeira Nossa Senhora da Boa Viagem. Alguns tropeiros vendiam santos de barro cozido, peças pequenas que se tornaram conhecidas como paulistinhas.
No comando do comboio ia a madrinha da tropa, que era uma mula ou égua líder, podia ser a mais velha e a conhecida de todos os muares. A madrinha portava o guinzo ou cincerro, fitas e ia sinalizando a passagem ou chegada da tropa. Por ser mais hábil, ela identificava o melhor percurso, disciplinava os demais animais, impedindo que a ultrapasse. Auguste Saint-Hilaire registrou: “No silêncio das matas ouvia constantemente o eco das vozes dos tropeiros e o ruído dos guizos da madrinha da tropa, mula predileta que guia fielmente a caravana, a cabeça ornada de panejamentos coloridos tendo ao alto uma pluma ou uma boneca.”
“... Passou um macho rosilho.
E, sem parar o animal,
falava contra o governo,
contra as leis de Portugal. Nós somos simples tropeiros,
por estes campos a andar.
O louco já deve ir longe:
mas ainda o vemos pelo ar...”
Os tropeiros eram os homens de negócios, que compravam e vendiam. Alguns produziam em suas propriedades. Circulavam por infinitas trilhas e caminhos, subindo e descendo serras, atravessando rios e riachos. Abasteciam os povoados de novidades, de utensílios e variedades. Tinha até tropeiro joalheiro. Além de vender de tudo um pouco, em muitos lugares o tropeiro levava e trazia notícias ou mensagens. Os tropeiros circulavam de norte a sul, de leste a oeste.
Um importante tropeiro foi o alferes Tiradentes. Ele ingressou na Cavalaria Paga que circulava pelos caminhos da Estrada Real, para evitar os ataques e assaltos às tropas. Cecília Meireles, no “Romanceiro da Inconfidência”, no Romance XXX ou o Riso dos Tropeiros, apresenta: “... Passou um macho rosilho./ E, sem parar o animal, / falava contra o governo, / contra as leis de Portugal. Nós somos simples tropeiros, / por estes campos a andar. / O louco já deve ir longe: / mas ainda o vemos pelo ar...”
João Guimarães Rosa, natural de Cordisburgo (MG), foi médico, diplomata e escritor. Cresceu ouvindo causos de tropeiros e um dia embarcou em uma tropa. Talvez tenha sido o mais ilustre tropeiro brasileiro, o que melhor captou a alma do tropeiro. Darcy Ribeiro, mineiro de Montes Claros, antropólogo, escritor e político, publicou em 1981 o romance “O mulo”. Darcy que crescera em uma das várias rotas tropeiras, ouviu, assistiu e vivenciou muitas cenas do cotidiano tropeiro. “O mulo” é uma saga impressionante sobre o universo do tropeirismo. Mesmo sendo um romance, nos revela como era a circulação das tropas por este imenso País. O Brasil da costa, o Brasil do meio, o Brasil dos fundos. Fico aqui imaginando se este romance tivesse sido escrito por um norte-americano ou europeu, já teria sido transformado em cinema, teatro, seriado de TV etc. O livro já foi traduzido para o espanhol, italiano e alemão. Na verdade, “O mulo” é quase um romance autobiográfico. O “mulo” não seria o próprio Darcy Ribeiro?
As tropas partiam muito cedo, ainda com o dia escuro. Paravam entre 12 e 14h para o descanso e abrigo. Instalavam o pouso e ainda sobrava um tempo para a caça ou pesca e preparar a refeição: paçoca de carne, feijão, carne seca, farinha de mandioca, torresmo e depois o café com rapadura. Comida de tropeiro precisava ser mais seca para ser transportada e não entornar. Para o tempo passar, tinha viola e contação de causos. E quando o tempo estava chuvoso ou frio, tomava-se uma cachaça para “esquentar os peito”. Muitas dessas paragens acabaram resultando em arraiais e vilas.
Do Rio Grande do Sul partiam tropas com destino a São Paulo. Saiam de Viamão e um dos pontos de parada era Sorocaba. Esta rota tornou-se conhecida e ao longo dela surgiram várias ocupações, por diversos fatores, dentre eles se destacavam: a pastagem para os animais e o abastecimento. Muitas tropas seguiam outros destinos, indo e voltando. Circulando e ampliando sobremaneira o território brasileiro.
Após a instalação da corte de Dom João VI, o Brasil se abre e recebe visitas de estrangeiros, que vão registrar aspectos diversos da vida, da cultura e das riquezas ainda inexploradas. Cada expedição de estrangeiro só podia ser realizada com o apoio de uma tropa. Em 1828, o reverendo Robert Wash, que publicou “Notices of Brazil, in 1828-1829”, uma obra da maior relevância para conseguirmos entender os mais variados aspectos do cotidiano de nosso povo no século XIX, estava no Rio de Janeiro, organizando sua expedição para Minas Gerais. Um de seus objetivos era encontrar com o grupo de ingleses que mineravam na Serra de São José, na atual Tiradentes. Wash teve problemas para conseguir juntar o dinheiro para a viagem, pois o papel-moeda só circulava no Rio; o ouro e a prata haviam desaparecido de circulação, então teve que juntar as grandes moedas de cobre, que valiam oitenta réis. Foi necessário um burro só para transportar os sacos com a quantia, que pesava três arrobas.
Muitas outras expedições foram realizadas, como a de Langsdorff, Spix e Martius, Auguste Saint-Hilaire, Richard Francis Burton e tantos outros. A expedição de Langsdorff tinha um artista, Joahann Moritz Rugendas, que registrou diversas cenas da paisagem brasileira: das áreas minerarias, dos trabalhadores e viajantes. Outros como Thomaz Ender e Charles Landseer contribuíram com imagens de registros para a memória tropeira. A figura que nos legou um acervo de valor imensurável foi Jean-Baptiste Debret, o maior e melhor pintor-cronista do Brasil colonial. Debret desenhou e pintou os mais variados temas. Registrou as mais belas cenas de tropeiros, suas paradas para descanso, abrigos e alimentação. Os tropeiros conduzindo longas filas de muares, ou tocando boiadas. Cenas de expressiva beleza pictórica. Estas obras podem ser apreciadas no primeiro catálogo raisonné “Debret e o Brasil – Obra Completa”, de Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, da Editora Capivara.
A presença tropeira foi tão marcante que influenciou também na arquitetura setecentista e oitocentista. O Chafariz de São José, atual Tiradentes, construído em 1749, é um dos mais imponentes. Destaca-se não só pela beleza, mas pela função que teve ao longo de quase 200 anos. De suas três bicas frontais, a população tinha água potável, para beber, cozinhar e para o banho. Na bica à direita a água era destinada às lavadeiras. Na bica à esquerda um enorme tanque para matar a sede das tropas que chegavam ou partiam para as viagens. Outro monumento relevante e muito ligado à memória tropeira é o Mercado Municipal de Diamantina, antigo rancho de tropeiros. Ponto das tropas e onde comercializavam seus produtos. Trata-se de um enorme galpão em arcadas rústicas, um dos símbolos da cidade, que é reconhecida como Patrimônio da Humanidade, título concedido pela Unesco.
Raras cidades ainda mantêm tropas, como a de Nivaldo Ribeiro do Silva, em Prados, MG. Aos 66 anos de idade e trabalhando há 50 anos com sua tropa, Nivaldo começou a vida de tropeiro vendendo burros, depois arreios e material de construção. Finalmente tornou-se oleiro e vendia seus tijolos transportados pela tropa. Figura de singular simpatia, juntamente com sua esposa Dona Cleia, fala que a vida de tropeiro é muito dura. Começa às 4h30 e termina ao final da tarde, quando os animais já estão no pasto. Vida tão difícil nos tempos atuais, não consegue seguidor. Mesmo assim, seu filho Nivaldinho acompanha o pai e é grande admirador da atividade e participa do Encontro de Tropeiros de Prados, quando os tropeiros de idade provecta se reúnem para matar a saudade dos tempos do trabalho e das tropas. Prados possui ainda uma preciosa atração, a Selaria Estrela, instalada num belo casarão colonial, todo autêntico, onde fabrica selas, cangas, chicotes, capangas e tudo mais para os murares.
A cidade de Lagoa Dourada está ao longo de rotas tropeiras. Organizamos uma expedição e fomos visitar as fazendas coloniais à procura de tropas. Lá elas não existem mais. Mas Lagoa Dourada é referência nacional em muares. Tudo começou com o padre Torquato José de Almeida, que ao apreciar uma cena bíblica, a “Fuga para o Egito”, quando São José foge com Nossa Senhora e o Menino Jesus montados em um jumento, evitando a persecução de Herodes, que ordenara a matança de inocentes, sugeriu a ideia de se criar um animal através do cruzamento de macho nacional com uma fêmea egípcia. O primeiro animal foi iniciativa do coronel José Eduardo de Resende, na Fazenda do Engenho Grande. Depois, ele construiu a Fazenda do Váu, em 1912, que passa a dedicar à criação de muares. Hoje seu filho Paulo José de Resende, já aos 96 anos toca a fazenda, administrada por seus herdeiros Renato e José Agostinho (Zelito). Do cruzamento, nasceu a Mula Pega. Pega era uma argola usada para prender escravo pelo pé. É um símbolo que figura na fachada da Fazenda do Váu e cada animal que nasce na propriedade tem a marcar impressa em seu lombo. Ao longo dos anos, a família Resende, que tem o registro da marca Pega, foi apurando a raça. A mula pega é dócil e adaptada para serviços pesados. Trata-se de um animal macio para cavalgar. O muar pega tem traçado elegante, cabeça retangular e orelhas longas. Na sala de visitas da Fazenda do Váu, encontramos uma estante com centenas de troféus e medalhas de concursos, retratos da família e uma notícia do Jornal “Estado de Minas”, de domingo, 27 de Maio de 1928: a página inteira é dedicada à mula pega.
Em Tiradentes, a família Costa, coleciona tudo sobre tropeiro, mas alerta: cada dia fica mais difícil encontrar uma peça antiga. Incentivados por Gilson Costa, todos familiares passaram a colecionar objetos e atualmente constituem o maior acervo de Minas Gerais. A família mantém uma curiosa cozinha tropeira, organiza a Festa do Carro de Boi e do Tropeiro. Mantém a tradicional Folia de Reis, que circula por Tiradentes visitando os presépios, também a Folia de São Sebastião, que visita as casas no período de 7 a 20 de janeiro, quando se celebra o dia deste santo mártir.
“... Seis burros seguem atrás da 'madrinha'
- a que tem uma banda de lã amarela
com lanudos pompons sobre os olhos, e sinos...”
Em Ouro Preto pude registrar, ainda, um tropeiro vendedor de galinhas, que são transportadas em balaios horizontais. Agora, durante o mês julho, com a cidade celebrando seus 300 anos de elevação à Vila, com milhares de turistas, tive o privilégio de fotografar o tropeiro Cassimiro Feliciano Mendes, de 55 anos de idade e já com 35 anos de vida tropeira. Com seus quatro burros, entregava lenha a metro em uma casa na Rua de Santa Efigênia. Cassimiro é um tropeiro muito atencioso e solícito, gosta muito do seu trabalho e disse estar ciente de que tem uma atividade que vai desaparecer muito breve. Encontrei o tropeiro Deusdete Martins, de 41 anos e com 25 anos nesse trabalho. Ele subia a Rua Coronel Alves com sua tropa de quatro mulas com muita pressa, tinha acabado de entregar lenha. São os dois últimos tropeiros de Ouro Preto em atividade.
A cidade, porém, sempre teve movimento expressivo de tropas, desde os primórdios. É o poeta Manuel Bandeira em um de seus poemas dedicados à cidade que toca numa figura singular: “... O casario do Vira-Saia, / Que está vira-não-vira enxurro ...”. O Vira-saia foi Antônio Francisco Alves, negociante que morava num enorme casarão da Rua Santa Efigênia. Segundo a tradição, era o chefe do bando que interceptava tropas que transportavam o ouro de Minas para o Rio de Janeiro. No interior da casa existe uma pilastra com uma placa de pedra-sabão com a data de 1741, tendo informações sobre a construção. Na Rua Alvarenga, atual número 733, na entrada da cidade, no bairro Alto das Cabeças, tinha os “pastos de Miguel”, que pertencia ao comerciante Miguel Moreira. Era local de chegada e de descanso das tropas em viagem, ou para acomodá-las em suas curtas temporadas na antiga Vila Rica. Na Rua das Lages, onde teve uma casa e era caminho de muitas tropas com suas madrinhas, a poeta Elizabeth Bishop escreveu: “... Seis burros seguem atrás da 'madrinha' / - a que tem uma banda de lã amarela / com lanudos pompons sobre os olhos, e sinos...”
Realmente, hoje em dia ficou mais difícil manter e sobreviver com o trabalho autêntico de tropeiro. Porém, há um enorme esforço para se resgatar e preservar esse patrimônio. Os diversos pontos de parada das tropas, que hoje são cidades, tentam manter essa tradição. Um desses lugares é a cidade de Castro, no Paraná. Desde os primeiros anos do século XVIII, a localidade está intrinsecamente ligada à rota tropeira. Lá se instalou, em 1975, o primeiro Museu do Tropeiro, que reuniu e expõe objetos, obras sacras, indumentária e artesanato ligado ao tema. O acervo é composto de mais de mil peças e pode ser considerado o mais importante do tropeirismo.
O Museu do Oratório, em Ouro Preto, reproduz um ambiente de repouso de tropeiro. O Museu de Artes e Ofícios, em Belo Horizonte, tem um grande acervo sobre o tema. O Museu do Folclore, no Rio de Janeiro, no bairro do Catete, criou uma ambiência interessante de um acampamento tropeiro. Em Sorocaba foi edificado o Monumento ao Tropeiro, que fora oferecido à cidade em seu 3º centenário, pelo Conde Francisco Matarazzo Júnior.
Lapa, que teve a primeira denominação como Santo Antônio da Lapa, no Paraná, também estava na rota e possui um Museu do Tropeiro, instalado na Casa Vermelha. A cidade também tem um Monumento ao Tropeiro e, criado pelo artista Poty Lazzaroto, um bonito e longo painel de azulejos.
O município de Silveiras, integrante da microrregião de Bananal, foi uma localidade próspera, na época dos tropeiros; mas com a construção das rodovias, entrou em decadência. Uma das maneiras encontradas para fomentar a economia e o turismo, foi o resgate da memória tropeira. Silveiras foi uma parada, inicialmente utilizada pela família Silveira, que mais tarde foi juntando outras e se formou o povoado. Foi elevado à condição de vila em 1842. A partir de 1980, a cidade passa a incentivar o movimento de resgate do tropeiro e instituiu o dia 31 de agosto como o "Dia do Tropeiro". Silveiras realiza uma das maiores festas dos tropeiros no Brasil. Em 1986, criou-se a Fundação Nacional do Tropeirismo, instalada em um casarão do século XIX, objetiva incentivar eventos, pesquisa, a culinária e outros aspectos do patrimônio tropeiro. A fundação mantém um Museu do Tropeiro, uma biblioteca especializada, espaço para eventos e uma hospedaria com restaurante de comida típica tropeira. Pelo Brasil afora existem diversos circuitos tropeiros, muitos deles integrando o Circuito Estrada Real, com a inserção de 171 municípios, tendo como pontos estratégicos: Paraty, Rio de Janeiro, Ouro Preto e Diamantina. Mais de 1,6 mil quilômetros do roteiro podem ser conhecidos de bicicleta, a pé, a cavalo ou de carro.
Luiz Cruz é professor e sócio fundador do Centro Cultural Yves Alves e da Cooperativa de Condutores de Turismo de São João del Rei.
Saiba mais: Graça Filho, Afonso de Alencastro. "A princesa do oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888)"
Esta notícia foi publicada em 25/07/2011 no sítio revistadehistoria.com.br. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.